Série Exílio

A FRUGALIDADE DA URGÊNCIA

Exílio, título da exposição de Carlos No na Casa-atelier Vieira da Silva, recoloca o desterro no centro do seu trabalho. Manifestando desde há muito preocupação com os direitos humanos, a sua obra oferece fragmentos de um mundo em que muitos continuam incessantemente à procura de refúgio.

Vieira da Silva soube bem o que era o exílio. Quando nos anos da II Guerra, ao ser-lhe negada a nacionalidade (já então casada com um estrangeiro, o judeu húngaro Arpad Szenes), teve de fugir da Europa para o Brasil, ela experimentou estranheza e desagrado, um desenraizamento que não mais esqueceu. Mesmo tendo sido um exílio que, comparado com tantos outros, poderia ser colorido como dourado, manteve-lhe na boca um travo de amargura.

Levado ao extremo, esse travo amargo pode matar. Não apenas de saudades – um mal talvez menor. Mas sobretudo de injustiça. A ausência de poder, a ausência de voz mata. E mata tanto mais quanto a sua arbitrariedade é destituída de sentido, dilatando o caos, retirando chão a quem tem de fugir. A cegueira de uns que conduz tantos outros ao desterro; a falência humanitária (ou a sua insuficiência) que conduz tantos à morte é o mal que Carlos No nos faz testemunhar. Fragmentos de vida, fragmentos de sentido e de esperança. Que levamos connosco, quando tudo arde? Que levamos connosco quando a vida é o único bem que nos resta?

Como se tivesse aportado, em fim de viagem à Casa Atelier de Vieira e Arpad, a exposição de Carlos No recebe-nos com a frugalidade da urgência. Um colchão velho; cintas de amarração; um banco ("Exílio # 1", 2017). Depois, outro colchão, uma cadeira, uma manta, um pneu ("Exílio # 2", 2017). Simultaneamente reais e simbólicos, estes objectos quotidianos (estas obras) igualam-nos. Que levamos connosco quando a vida é o único bem que nos resta?

Transportáveis, transportados, estes objectos usam o espaço da exposição como se estivessem de sobreaviso. A sua colocação é estratégica. Instável, estratégica. Esperando. Poderão ser pousados? Poderão ser usados? Poderão permanecer, servir de efectivo descanso? Ou manter-se-ão em curso, em forçada rota de incerteza?

Neste refúgio que a Casa significa, a desolação da fuga é tanto mais impressiva quanto são frugais os meios da sua expressão. E, para que não restem dúvidas de que o humano de que o artista nos fala engloba também o visitante; para que não se engane este ao pensar que está a salvo, o desenho (seja ele figurativo ou sob a forma de frases) reflecte-nos com expressiva secura. Por um lado, a figura isolada de uma mulher numa paisagem desolada. Que faz ela ali? De onde vem? O que espera? O que a espera? Esconde-se? Revela-se? A incerteza da figura desta mulher negra é a nossa própria insegurança, tanto maior quanto a geografia indicada da imagem (rigorosamente igual nas sete obras da série “Souvenirs”, em formato de bilhete postal) só muda na legenda: Somália, Sudão, Palestina, República Democrática do Congo… ou Venezuela – criada este ano. Por outro, o díptico "Amo-te... mas não muito" (2017) relembra que a nossa percepção do outro (tantas vezes o outro que busca refúgio) é tanto mais “tolerante” quanto o outro existir entre nós em números reduzidos. A quantidade apagará a identidade?

Exílio, título desta exposição, é uma palavra que expressa dureza. Como desterro – talvez mais literal no sentido de despegamento, de desenraizamento. O despojamento da raiz é o arrancar da identidade, algo que se forja na pertença. Por isso, Sócrates, o ateniense, preferiu a morte ao exílio. Mesmo quando os discípulos lhe ofereceram a saída, ele bebeu de bom grado a cicuta. Devo um galo a Esculápio. O pedido para que se providenciasse o devido pagamento é uma afirmação poderosa de reposição de pertença. À beira da morte, o amor pela cidade. À beira da morte, a afirmação ontológica da paideia. Sou. Culturalmente, sou. Ora, que passamos a ser quando deixamos o nosso solo e tudo o que ele é? Perguntas que o artista deixa nas nossas mãos vazias.

 

Emília Ferreira
Almada, Julho de 2017