Estais

Para falarmos do que vemos, é bom vermos do que falamos. Aqui, antes do mais, as palavras querem dar ao espaço um som que o diga e decifre (decifrar não é apenas ler, é escrever com os olhos) nas suas estabilidades e oscilações, simetrias e desequilíbrios, fidelidades e fugas, flutuações e afundamentos. E também nas suas serenidades e desassossegos, ascensões e quedas, proximidades e distâncias, visibilidades e esconderijos, formas e funções, chegadas e partidas, seguranças e ameaças, físicas e metafísicas.

Somos no mundo como aqueles que, pela sombra da tarde a mudar-se em noite, entregam a incerteza dos seus pés aos degraus que não conseguem ver bem para subir a escada e a sua inclinação altiva. Procuram esses degraus sumidos com lentidão e tentativa, como se eles fossem os símbolos de um código que não acaba de dizer o seu significado ou as vozes de uma retórica que não cessa de erguer a sua voz.

Fazer uma exposição é pôr no espaço os nossos passos e fazer deles o caminho que nos leva às coisas e ao seu nome diferido ou oculto. Mostrar é esconder o que não se mostra e, não raro, é esconder ainda mais e melhor o que se mostra. Quem olha sabe que vai ao engano – e é a partir desse engano que o desengano se pode construir e transmitir como uma herança sempre dada a quem a recebe, mas talvez não a mereça.

Falar de uma exposição e das obras que a fazem no espaço que se mede e no tempo que se conta é cortar o nó da garganta que ata o engano ao desengano da arte e da vida que a intersecta, como uma estrada seca e em S atravessa um campo verde e a perder de vista.

Assim se lê: “ Era já tarde na noite quando K. chegou. A aldeia estava coberta de neve. Nada se via da colina do castelo, envolta em neblina e escuridão, nem sequer uma luz ténue deixava adivinhar o grande castelo. K. demorou-se longamente na ponte de madeira que leva da estrada à aldeia e olhou para cima, para o que lhe pareceu ser o vazio”. (Kafka, «O Castelo»).

K. é agrimensor e com a sua arte mede a terra e o perímetro da nossa sombra nela. O artista é um agrimensor do mundo e a sua chamada ao castelo surdo do silêncio, da solidão e da sombra a que chamamos arte leva-o a saber que a salvação é uma condenação às imediações, cuja vastidão de vistas, vislumbres e visões ele mede com o metro do mito, o compasso da alegoria, a sinusoide do símbolo e a matéria da memória.

Infelizes são os que, trocado o castelo pela aldeia que o rebaixa e cerca, chamam fortaleza firme a uma fragilidade fugitiva, ficando felizes e festivos com essa arte de trocar os braços e confundir os pulsos onde o coração bate.

Criar é saber que não se está no lugar em que se está e nunca moramos numa morada certa. É continuar a bater à porta que não se abre e só nos responde com uma voz atravessada pelo eco mudo da sua indiferença e da sua vastidão. Criar é tentar fazer outra, e outra, e outra vez ainda, o caminho de ida e volta da aldeia para o castelo e do castelo para a aldeia. Esse caminho é, no meio de um nevoeiro que nunca levanta, uma experiência cruel e caótica, cortante e confusa, cega e compulsiva.

Ao resultado dela, chamamos obra e essa obra é como a cruz vazia erguida sobre um calvário de vento, voragem e vertigem. Mas é aí que os deuses, como pássaros sobre ramos, podem poisar e lançar o mais terrestre e terroso dos gritos celestes de abandono, espanto, perplexidade, dor e lamento: Eli, Eli, lama sabactani?

A cruz é uma geometria de colisão e de contraste, uma tecnologia de convulsão e de combustão, uma figura de comunhão e de excomunhão. No mundo a que outrora já chamámos nosso com um acenar de cabeça mais forte e firme do que o de hoje, diz-se, num dizer sem fim, que a cruz é o íman que atrai os deuses e afasta os demónios.

Se as leis electromagnéticas de encontro dos opostos e de recusa dos idênticos valerem também aqui, significa isso que a cruz é feita de uma matéria diabólica que aproxima, prende, prega e mata os deuses - ou o deus que deles é o Deus. E é assim que a cruz estranhamente O representa e simboliza, trocando com Ele, assim o castelo troca com a aldeia de Kafka.

É que, na morte que a cruz lhes dá, os deuses encontram a condição divina de uma restauração e de um resgaste, de uma redenção e de uma ressurreição. E assim se realizam as profecias prometidas e as sentenças segregadas. Assim se cumprem os rituais de passagem do tempo para a eternidade que a cruz simboliza com o seu braço horizontal de humilhação e sombra, intersectado pelo seu braço vertical de altivez e claridade. Sobre tudo isso, e o muito mais que a cruz tem de história e simbolismo, de iconografia e de iconologia, de cosmogonia e de teogonia, escreveu esse raro René Guénon um livro que fez época e saiu mesmo da época que o fez. Para essa memorável obra, as grandes e várias correntes espirituais correm tantas e tão torrentosas como as dos grandes rios do mundo para a sua foz.

Nesta exposição de Carlos No, a cruz está no alto da sua suspensão, agarrada a um calvário de fios telefónicos. A cruz está aqui como está no nome de San Juan de la Cruz, o poeta místico que falou da noite obscura e da confusa, mas fulminante, transmissão dos sinais. Ou está como no nome de Sor Juana Inés de la Cruz, a audaz e alterosa freira e escritora mexicana, loba sempre a preparar o assalto ao seu rebanho interior, bailarina sempre em pontas a dançar o seu bailado mental. Sobre ela e as armadilhas da fé, Octavio Paz escreveu um livro sem descidas.

Estamos neste espaço e ele é, perante nós, um lugar que os reflexos percorrem e atravessam como a um espelho. Nas paredes da igreja dessacralizada que esta cruz submete e a que preside, como um alvo preside à pontaria e à precisão do tiro que o atinge, estão duas obras, assim fossem elas o bom ladrão e o mau ladrão daquela antiga tarde escurecida pelo terror e pela tempestade, em que o uivo do vento se aproximava do uivo dos animais e tudo tremia como a letra escrita por uma mão carregada de velhice, ou de doença, ou de desgraça, ou de delito, ou de defeito, ou de delírio.

Esta cruz, rondada e roída pelo rato rude e raivoso do tempo, parece dizer para as outras obras o poema de Herberto Helder: «? como distinguir o mau ladrão do bom ladrão? O mau ladrão/ rouba a cinza e o bom ladrão o fogo/? e como saber se é fogo ou cinza o que há à mão do roubo?/? será que a cinza é só cinzenta e o fogo roubado queima até ao osso?/o fogo é posto ali para ser roubado pelos loucos, / a cinza é posta às portas do carnaval para espalhar no rosto, /para saber-se de quem foram a mão e o rosto do roubo,/ e há isto: quem tem a mão queimada tem em tudo fogo posto, /obra, vida e corpo/ e no fundo da mão do outro não há nada, mesmo na mão cheia de ouro/ (ou nela sobretudo)». (Heinrich von Kleist versus Johann Wolfgang von Goethe, «Servidões»).

Nestas três obras, a que Carlos No deu os nomes desolados de «Estais», «Exílio» e «Anónimos», há uma passagem mediúnica da transcendência ameaçadora para a imanência ameaçada, da certeza aterradora para a dúvida aterrada, da tese perseguidora para a antítese perseguida, da verdade ardente para a ironia ardida. E é como se nessa passagem houvesse uma construção destruidora de caminhos, posições, potências, lugares e limites. É como se voltássemos de um lugar onde nunca estivemos.

Estas três peças de Carlos No - e uso aqui a palavra “peça” também no seu sentido dramatúrgico e mesmo dramático - ligam-se como os três volantes desconhecidos de um tríptico antigo, ou como as três partes sucessivas de um conto moral, ou como as três posições desencontradas de um kamasutra espiritual, ou como os três actos secretos de um auto ritual, desenhando no espaço profanado pelo sagrado que se retira. São um altar feito de três altares de perguntas sem respostas que não sejam elas próprias, tornadas então alheias.

Para a sua arte, Carlos No usa os métodos e os materiais que João Pinharanda, com a sua perspicácia analítica e a sua eficácia curatorial, descreveu assim: “Carlos No evita a intervenção manual nas obras, recorre com frequência à fabricação industrial (embora longe de qualquer tentação de design) e à associação de objectos pré-existentes (de fabricação também massiva e banal), garante um discurso onde prevalece a seriedade programática e crítica, mas onde se insinua também a ironia.” E Pinharanda falou também de uma “lógica de associação de elementos díspares (ou serialmente concebidos e produzidos) em composições complexas mas coerentes”.

Ficou dito o que foi bem dito. Aqui, estão estas palavras-chave: fabricação, associação, seriedade, ironia, complexidade. Na mão que se ergue, estas palavras são os cinco dedos que ou se esticam ou se encolhem, fazendo com esse movimento ora a forma da palma que se abre ora o fundo do punho que se fecha.

As obras de Carlos No têm, em si, esta sístole e esta diástole visual, artística, mas também cultural, social e política, com as quais se muda ou conserva o mundo, emudecendo-o ou fazendo-o gritar, parando-o ou fazendo-o rodar.

Estas três obras e os seus pactos de concórdia e de discórdia, de consolidação e de dissolução, dão a este espaço uma lúcida alucinação de sentidos, simulações e simulacros. Perante elas, o nosso olhar troca o labirinto do mundo por uma mensagem em morse dele. Nunca saberemos se essa mensagem nos dá um segredo sagrado ou a violação violenta dele.

Nestas três obras, afinal, há o tenso triângulo no meio do qual espreita o olho que faz de nós videntes do visível e voyeurs do invisível. Com esse olhar sem sono e sem sossego, procuramos a origem, que nos foi tirada, e o destino, que nos será dado apenas quando já cá não estivermos para o receber.

Franz Kafka disse um dia: “ A esperança existe e é infinita, mas não para nós”. É isso que a arte também diz, mesmo se nos aparece com o largo e ágil movimento dessa esperança que gira ao contrário do sol.

 

José Manuel dos Santos
Março de 2019

(Fotos exposição Museu de Faro - Vasco Célio/Stills) ©